Era mês de fevereiro já chegando
em março no nordeste brasileiro. A seca estava no pico. Na caatinga, as últimas
flores e folhas teimosas do mato rasteiro entregavam suas vidas ao sol ardente
e aos ventos que mais pareciam bafos quentes das fornalhas do inferno. O verde
ia se “amarronzando” de vez. A seca estava em seu pior momento. O momento
decisivo. Ou começava a chover ou se emendaria uma seca na outra sem passar
pelo período das chuvas. Os animais, principalmente o gado tombava um a um pela
fraqueza ocasionada pela falta de alimentação, consequência direta da seca e
pela sede propriamente dita.
Tudo era tristeza. Dava pra ver a
tristeza nos olhos dos bichos e das gentes. Os animais tombavam mortos e nas
gentes era a esperança que tombava. Assim iam tombando um a um, cada qual do
seu jeito. A impressão que dava era que Deus tinha mesmo se esquecido de tudo e
de todos por aquelas bandas. Só se via poeira e algumas pessoas se arrastando
em busca das últimas poças d’água em que se transformaram os açudes. Era um
cenário desolador.
Famílias inteiras e famílias
metades punham-se na estrada levando nas costas, feito burros de carga, seus
pertences, suas crianças e sua dignidade. Deixavam quase tudo para trás na
busca desesperada por outra vida melhor em outras paragens onde a falta de
esperança não fosse tão presente. Buscavam um lugar onde a dor fosse outra que
não a dor do estômago vazio que finda esvaziando também a esperança da alma.
Em meio a esta paisagem desolada,
num pedacinho de terra distante de tudo, avistava-se uma casinha de
pau-a-pique. Lá morava um João, mais um da Silva entre tantos da Silva famintos
que resistiam até as últimas forças pra não abandonar a terra que foi do pai e
que um dia ia se encher de flor, de verde, de comida e de alegria.
Meio sentado e meio deitado em
sua rede velha e puída que tinha a mesma cor tudo, João se balançava pra lá e
pra cá olhando para o céu a espera de um sinalzinho que fosse da chuva que
traria novamente vida à tudo, inclusive pra ele mesmo. Quando a seca atinge
esse estágio até parece que as coisas vão ficando todas da mesma cor marrom.
Cor de morte. Cor de desesperança. Parece que não existem mais pessoas, nem
bichos, nem casas, nem vegetação. Só existe o marrom. A cor passa a ser coisa.
Ela representa a entrega das forças; ela é a face da prostração do ânimo.
Pensativo, balançando pra lá e
pra cá em sua rede gemedeira, João da Silva se perguntava: por que as coisas
têm de ser assim? Sabia que na cidade as coisas eram um pouco diferentes. O
povo dizia que lá tudo era mais fácil. A única resposta que lhe vinha à mente
era que Deus havia se esquecido dele mesmo. Não só dele, mas daquele povo todo
que, aos seus olhos, parecia que nem era mais gente, porque já tinham a mesma
cor de tudo. Marrom. Cor de abandono.
Nessas horas, seu pensamento o
levava de volta à infância, à adolescência e para sua mocidade. Foram épocas em
que chuva não foi tão ausente e molhava aquela terra que se enchia de beleza e
de alegria só de ouvir o barulho de um trovão. Mas, logo voltava para o hoje e
se deparava com toda aquela sequidão, com toda aquela tristeza. Dava de cara
com aquele sol esmagador, cujo brilho só faltava cegar. Cadê as nuvens?
Perguntava pra ninguém. A única resposta que ouvia era a sua própria, que
repetia que Deus se esqueceu daquela terra e daquela gente da mesma cor da
terra. Insistia: como é possível? Tanto lugar de fartura, onde chove até demais
e ali, aquela insistente sequidão, aquela falta de saída. O fato é que não
conseguia, em sua cabeça de sertanejo, de homem simples, acreditar que aquilo
era justo. Não era justo não, que aquele povo todo vivesse naquela situação de
penúria. Já tinha rezado tanto. Já tinha feito tanta promessa pra tudo que era
santo e nada. Nada de chuva. A única água que nunca faltava eram as lágrimas
daquela gente sofredora e triste que não tinha meios de sobreviver com
dignidade.
O que João ainda tinha em casa
pra comer, era um resto de feijão que nem dava pra manter o saco em pé, uns
bons punhados de farinha e algumas rapaduras, coisa que daria pra poucos dias.
Com sorte caçaria um mocó pra fazer de mistura. João ficava imaginando como era
possível que esses bichinhos conseguissem sobreviver naquela terra empoeirada.
Se para ele, homem, já estava quase impossível...
Dava graças a Deus por não ter
casado ainda e não ter uma ruma de meninos pra criar. Podia ficar ali
prostrado, esperando a morte chegar sem ter outras preocupações, além daquelas
inerentes à seca. Ficaria maluco, com certeza, se tivesse mais gente pra ele
ter de dar de comer. Se tivesse mulher e filhos seus problemas seriam bem
maiores. Seriam sim!
Numa dessas tardes em que nem
vento tinha e que tudo parecia parado, e o único movimento era o de sua rede
gemedeira, seus olhos avistaram uma figura que de longe vinha aos poucos se
aproximando. Um pontinho no meio do nada que ia crescendo de pouquinho em pouquinho. Um vulto,
que como tudo por lá quase não tinha cor própria. De vez em quando se misturava
com a poeira da estrada e quase não se distinguia dela. Levou bem uns vinte
minutos para o velho maltrapilho poder, aos olhos de João, ser separado da
estrada, dos galhos secos e da poeira. João se surpreendeu, porque nesses
tempos de seca brava ninguém se aventurava a fazer grandes caminhadas por ali,
até pra economizar forças. Só se aventuravam aqueles que decidiam a fugir da
seca e da falta de perspectiva; aqueles que se iam de uma vez por todas.
- Se achegue meu velho! Que
diabos o senhor faz por estas bandas. O rumo da cidade é pro outro lado!
- Estou só passando. Tô meio sem
rumo. Não tenho morada fixa. Mas não quero incomodar. Se puder ajudo, se não
vou me embora.
- Venha pra sombra meu velho!
Dizendo isso, levantou-se, foi até o camburão de água que ficava na cozinha,
encheu uma caneca e voltou.
- Tome aqui um gole d’água. Pra
beber ainda se arruma.
- Obrigado meu filho.
Puseram-se a conversar sobre
muitas coisas, mas o assunto principal não poderia ser outro a não ser a seca
que assolava a região e os corações. Não tinham como fugir dela, nem nas
conversas. Falavam, falavam, falavam, que mais podia se fazer em relação à
seca? Anoiteceu, João foi pra cozinha e preparou no fogão de lenha um feijão
temperado com fome. Comeram com gosto.
João espalhou um monte de palha no canto do quarto para o velho dormir
em cima e descansar os ossos. O velho agradeceu a acolhida e dormiu a noite
inteira.
No outro dia, quando o sol já
apontava ameaçadoramente no horizonte, o velho já se encontrava pronto pra
colocar os pés na estrada. João não quis deixar o velho sair sem um desjejum e
lhe deu de comer mais um “feijãozinho”. O velho comeu, agradeceu e fez este
comentário:
- Sabe moço, eu já estive em
muitos lugares nesta minha longa vida. Já vivi muito mesmo moço. Estive em casa
de pobre e casa de rico; em casa de gente boa e em casa de gente ruim. Já vi
muita beleza, mas já vi muita coisa feia, mas uma coisa posso lhe dizer: não me
lembro, em todo esse tempo, de ter saboreado uma refeição tão boa, ter bebido
uma água tão fresca e ter estado em tão boa companhia.
João não disse nada, apenas olhou
para o velho como quem olha para uma criança. Pensou que aquilo era coisa de
caduco mesmo. Onde já se viu uma caneca de água salobra, um prato de feijão sem
tempero nenhum e que tão duro quase nem cozinhava e um matuto feito ele terem
aquelas qualidades. De jeito nenhum! Só podia ser coisa de caduco mesmo.
- Sabe moço, continuou o velho,
você vive se perguntando por que é que as coisas são assim tão difíceis, não é
verdade? Pois eu vou tentar lhe explicar pra ver se você entende. Você já viu
alguém fazer esforço quando está na fartura?
Não, na fartura a maioria das pessoas se acomoda. Você já viu alguém se
perguntar por que é que Deus é tão generoso quando as coisas estão indo bem?
Não moço, a maioria das pessoas nem se lembra que Deus existe quando as coisas
estão boas. O problema moço é que nós só crescemos e aprendemos a ser pessoas
melhores na dificuldade. Imagine o tamanho da alegria desse povo quando a chuva
vier. O tamanho dessa alegria só pode ser comparado com o tamanho da tristeza
provocada pela seca. Disso, você pode concluir que só pode saber realmente em
toda plenitude o que é uma grande alegria quem passou por uma grande tristeza,
porque tem uma coisa oposta pra comparar. Tem muita coisa que não dá pra gente
compreender mesmo. Coisas que estão nos desígnios Daquele que criou tudo isso e
que só Ele sabe. Tem aquelas coisas ruins que podemos ter feito nas outras
encarnações que já tivemos antes aqui na Terra e que talvez uma vida só não dê
pra consertar. Mas de qualquer jeito não é tão difícil assim entender que
precisamos do ruim pra saber o que é o bom. Precisamos da seca pra poder a
valorizar a chuva abençoada e aprender, como faz a formiga, guardar um pouco na
época da fartura pra quando a fase ruim chegar pra não passar necessidades. Há
quanto tempo existe a seca moço? Será que já não era pra gente ter entendido a sua
lição? Precisamos da fome pra sentir o gosto da comida. Um mundo onde não
faltasse nada, faltaria tudo. Faltaria até alegria, sabe por que? Porque não
teria tristeza pra comparar.
João ouvia tudo, prestava atenção
e compreendia mais ou menos o que o velho queria dizer. Depois de pequena
pausa, o velho continuou falando de um jeito manso como quem dá tempo para o
outro pensar no que foi dito.
- Nunca diga que Deus te esqueceu
meu filho, porque isso não é verdade. Deus está presente sempre, para isso é
que Ele deixou pedacinho dele dentro de nós. O problema é que basta a coisa
ficar ruim pra gente se esquecer disso. Todo filho tem alguma coisa do Pai.
Nunca se deixe levar pela desesperança, porque um dia a chuva vem. Pode demorar
um pouco mais ou um pouco menos, mas um dia ela vem. E quando vier trará muita
coisa que se havia esquecido ou perdido. Não deixe que a pior das secas tome
conta de você, a seca do coração, a falta de amor. Pra essa não tem chuva que
dê jeito. Veja que com toda a miséria que você está passando, ainda teve a
bondade de me dar de comer, de beber e me dar pousada. Você mostrou que é
possível ter um gesto de bondade mesmo numa situação dessas. Isso moço foi
lição da seca, porque na fartura, esse gesto não seria tão valioso. Fique em
paz moço, que Deus te abençoe!
João continuou parado
, pensativo, enquanto o velho do qual nem sabia o nome ia se
afastando lentamente e seu vulto novamente se misturando ao marrom da estrada,
da poeira, de tudo. Ficou ainda mais alguns minutos a matutar e chegou a
conclusão de que o velho até tinha alguma razão, mas no fundo estava caducando
mesmo.
Entrou em casa pra tomar um gole
d’água e notou uma coisa estranha: tanto o saco de farinha quanto o saco de
feijão estavam quase cheios. Jurava que estavam quase acabando da última vez
que os tinha visto! Tinha rapadura demais também! Sentiu um arrepio
percorrer-lhe a espinha. Vai ver que a seca lá estava lhe cozinhando os miolos
também. Pegou a velha caneca de alumínio, encheu com água do velho camburão e
bebeu. Nunca em sua vida tinha bebido uma água tão doce, tão fresca...
Ainda meio assustado pensou: é...
vai ver que Deus não esqueceu da gente mesmo...
Um espírito amigo
Mensagem psicografada em 26/09/2016
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